Se você me perguntar quantas estradas um roqueiro tem de percorrer até que seja considerado uma lenda, respondo que o baiano Marcelo Nova já percorreu todas com bilhetes de ida e volta. Artista pop brasileiro consagrado, criou a banda Camisa de Vênus, mito do rock nacional, que viveu seu apogeu nos anos oitenta; chegando a gravar um disco por ano, contratada de grandes gravadoras. Músicas como Sinca Chambord, Bete Morreu, Eu não matei Joana d’Arc e Só o fim frequentaram todas as hit parades de rádios e programas musicais de televisão daquela década, mesmo com o conteúdo libertário e iconoclasta de suas letras. Ao longo daqueles anos e até os dias de hoje, o artista Nova firmou uma imagem de bad boy do rock, que se legitimava com as apresentações rebeldes da banda, muitas delas regadas a pancadarias e bebedeiras homéricas, mas também por declarações polêmicas e intelectualizadas. Conhecidos como os punks do Camisa de Vênus, o grupo descia literalmente do palco para brigar com algumas platéias não menos punks. Assim foi forjado o símbolo Marcelo Nova, que marcaria de forma indelével a juventude daquele tempo e a memória musical de gerações que viriam a seguir.
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"Vivemos numa época fragmentada!" Marcelo Nova. |
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Letras de Marcelo Nova funcionam como uma espécie de Retrato de Dorian Gray ao avesso; nos divertimos enquanto contemplamos nossa desgraça. |
Numa rápida conversa, antes mesmo de começarmos a gravar a continuação da série Lendas do Rock, tive a sorte de ouvir do ícone pop do pensamento niilista dos oitenta, a resposta a uma pergunta bastante simples: O que é básico hoje? (segue a resposta de Marcelo) _ Talvez seja não fugir do clichê, mas penso que, no primeiro caso, por ele ser uma unânimidade, isso se comprova quando você se interessa a ler, quando você está defronte do material que ele deixou, que é um sujeito chamado William Shakespeare. Porque eu não conheço na literatura, e aí a maneira como ele escreve: passional, intensa, inteligente, brilhante, criativa; a falar desbragadamente sobre o ódio, sobre a paixão, sobre a inveja, sobre o poder, sobre o sexo, sobre o ciúme; sobre todas as qualidades e defeitos que nós humanos possuímos. Tudo isso é mais que literatura, já pode ser considerado também filosofia no sentido pluralista: são várias filosofias, várias meditações sobre vários assuntos. Ele me parece que é o pai da matéria, da reflexão humana. Quando você pretende refletir sobre algo, pode ter certeza de que o velho bardo já refletiu muito antes de você, até porque faz quatrocentos, quase quinhentos anos que ele nos brindou com aquela obra extraordinária. E o outro, num patamar contemporâneo, que escolheu não a pena, mas escolheu um instrumento, é (Bob) Dylan, que tem tratado a poesia e os seus textos de uma maneira mais que poética, filosófica. Algumas vezes, bastante filosófica...
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"Você lê a letra de Mr Tambourine Man (Bob Dylan) e diz: como aquele menino conseguiu escrever isso?" Marcelo Nova. |
Longe de parecerem óbvios, os nomes citados por Nova superam de longe a burrice das unanimidades. Não são apenas estas duas figuras que Nova reverencia em sua entrevista, mas Shakespeare e Dylan estão no cerne da cultura de nosso tempo. Nada poderia ser mais emblemático do que esta mistura, pois ela é surpreendentemente reveladora de nossa maneira de abordar as questões mais cruciais da humanidade. E talvez seja esta a função do gênio na sociedade; trazer à luz temas de difícil entendimento para os pobres mortais.
Considerado o maior dramaturgo de todos os tempos, William Shakespeare teve o mérito de levar ao grande público as questões abordadas pelos filósofos gregos de uma forma que o povo pudesse entender e se divertir. Muitos de seus textos e temas, especialmente os do teatro, permaneceram vivos até os nossos dias, sendo revisitados com frequência pelo teatro, televisão, cinema e literatura. Entre suas obras mais conhecidas estão Romeu e Julieta, que se tornou a história de amor por excelência, e Hamlet, que possui uma das frases mais conhecidas da língua inglesa: To be or not to be: that's the question (Ser ou não ser, eis a questão). E é precisamente a manutenção desta dúvida que parece explicar seu interesse: somos vulneráveis, vulgares, incapazes de decidir e morreremos assim.
Considerado o maior dramaturgo de todos os tempos, William Shakespeare teve o mérito de levar ao grande público as questões abordadas pelos filósofos gregos de uma forma que o povo pudesse entender e se divertir. Muitos de seus textos e temas, especialmente os do teatro, permaneceram vivos até os nossos dias, sendo revisitados com frequência pelo teatro, televisão, cinema e literatura. Entre suas obras mais conhecidas estão Romeu e Julieta, que se tornou a história de amor por excelência, e Hamlet, que possui uma das frases mais conhecidas da língua inglesa: To be or not to be: that's the question (Ser ou não ser, eis a questão). E é precisamente a manutenção desta dúvida que parece explicar seu interesse: somos vulneráveis, vulgares, incapazes de decidir e morreremos assim.
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Quase quinhentos anos depois, Shakespeare permanece insuperado em sua arte de trazer ao domínio público as principais preocupações humanas. |
Em 2004, o cantor e músico norte-americano Bob Dylan foi escolhido pela revista Rolling Stone, como o 2º melhor artista de todos os tempos, ficando atrás somente dos Beatles e uma de suas principais canções, Like a Rolling Stone, foi escolhida como a melhor de todos os tempos. Influenciou diretamente grandes nomes do rock americano e britânico dos anos de 1960 e 1970, destacando-se aí The Beatles, notadamente nas composições de John Lennon, a partir do álbum Rubber Soul de 1965. Músicas como Blowin’ in the wind tornaram-se símbolos da luta por direitos humanos sem que ele próprio fosse um ativista ou artista engajado. E o mais incrível, suas principais letras foram escritas quando Dylan tinha entre dezenove e vinte e três anos. Se você para e lê o conteúdo daquelas canções, se pergunta: Como um garoto poderia tratar destes temas com tanta propriedade e profundidade e de uma forma tão... pop!?
Uma coletânea dos trabalhos de Marcelo Nova fornece uma radiografia social de nossa época. Nela, é ele quem fala desbragadamente sobre sexo, ódio, a hipocrisia do amor romântico, o poder e a paixão. Obra não panfletária, suas letras dizem que as igrejas existem para enganar as pessoas, que o amor não existe e que, afinal, ele faz as coisas do seu jeito. Capaz de trazer a clássica Joana d’Arc ao domínio dos shows de rock, Marcelo fez um tipo de som que fugia à cartilha comportadinha de outras bandas de seu tempo. Defensor de sua identidade artística, suas letras e músicas continuam em franco processo de evolução. Apesar de amado pelo público, Marcelo se recusa a repetir suas canções do mesmo modo que foram gravadas. Para ele, isto só pode soar falso, pois a música não é algo afastado de seu meio e não pode ser compartimentada numa caixa que lhe prenda a uma única forma. O rigor de seus textos e a importância que estes ocupam em seu trabalho ainda devem ser melhor estudados, mas o nosso bardo baiano caminha a passos largos para o panteão dos imortais.
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Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Stanley Kubric chega ao cúmulo de responder às três perguntas mais importantes da humanidade. |
Admiro os gênios pela simplicidade com que tratam de assuntos tão complexos ou delicados. Marcelo faz isso em suas poesias criando uma música que atinge a todas as gerações com um efeito catártico devastador. A contundência de suas afirmações só são amenizadas pela forma simples e direta com que as formula. Suas letras funcionam como uma espécie de Retrato de Dorian Gray ao avesso, nos divertimos enquanto ouvimos o anúncio de nossa desgraça.
Eu acrescentaria ainda, por minha conta, para melhor entendimento do papel de grandes artistas, um nome definitivo na cultura que merece ser lembrado e este é Stanley Kubric. Autor daquele que é considerado o melhor filme de todos os tempos, 2001 – Uma odisséia no espaço, ele responde, até com certa graça, a três questões que poderiam nos levar à loucura: Quem somos? De onde viemos? Para onde iremos? As três partes do filme. Com uma duração total de 139 minutos e apenas 40 de diálogo, analisa a evolução do ser humano, desde os primeiros hominídeos capazes de usar instrumentos, até a era espacial e para além desta. Sem recorrer a Deus, ao final, temos as respostas, mas não nos tornamos adeptos de nenhum culto. Marco do cinema mundial, Kubric conseguiu abordar os temas mais radicalmente pesados, criando filmes densos e de grande importância para a cultura, mas que agradavam ao público que os assistia e aos estúdios que os bancavam.
Eu acrescentaria ainda, por minha conta, para melhor entendimento do papel de grandes artistas, um nome definitivo na cultura que merece ser lembrado e este é Stanley Kubric. Autor daquele que é considerado o melhor filme de todos os tempos, 2001 – Uma odisséia no espaço, ele responde, até com certa graça, a três questões que poderiam nos levar à loucura: Quem somos? De onde viemos? Para onde iremos? As três partes do filme. Com uma duração total de 139 minutos e apenas 40 de diálogo, analisa a evolução do ser humano, desde os primeiros hominídeos capazes de usar instrumentos, até a era espacial e para além desta. Sem recorrer a Deus, ao final, temos as respostas, mas não nos tornamos adeptos de nenhum culto. Marco do cinema mundial, Kubric conseguiu abordar os temas mais radicalmente pesados, criando filmes densos e de grande importância para a cultura, mas que agradavam ao público que os assistia e aos estúdios que os bancavam.
Se tomarmos emprestado o frankfurtiano conceito de Indústria Cultural, cunhado para definir a conversão da cultura em mercadoria, concluiremos que toda a produção cultural e intelectual passou a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico. O mercado visa a maior quantidade de público e lucro e faz sempre escolhas que atendam ao desejo de grandes maiorias. Grandes massas são ignorantes em geral, portanto, produtos culturais que se destinam a estes públicos devem necessariamente se encaixar em seus padrões sócio-culturais, o que significa dizer que atendem à demanda destas pessoas por diversão com um mínimo de conhecimento, ou seja, o formato atual do entretenimento. Artistas passageiros e oportunistas prendem-se a fórmulas de sucesso já testadas, estanques e momentâneas, produzindo obras massificadas e efêmeras. Gênios existem para tornar simples aquilo que é complexo e para nos ensinar. Suas obras são permanentes e abertas. Muito mais do que guiados por certezas, alguns dos grandes artistas souberam manter uma forte conexão com a cultura e um permanente estado de tensão e dúvida em suas obras. Não se preocuparam com as tendências e sim com a universalidade das questões humanas, lançando perguntas ao ar e ouvindo as respostas soprando com o vento.
André Bechelane
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