sábado, 12 de novembro de 2011

Soprando com o vento...

Marcelo Nova deu origem a WEBSERIE        
          Se você me perguntar quantas estradas um roqueiro tem de percorrer até que seja considerado uma lenda, respondo que o baiano Marcelo Nova já percorreu todas com bilhetes de ida e volta. Artista pop brasileiro consagrado, criou a banda Camisa de Vênus, mito do rock nacional, que viveu seu apogeu nos anos oitenta; chegando a gravar um disco por ano, contratada de grandes gravadoras. Músicas como Sinca Chambord, Bete Morreu, Eu não matei Joana d’Arc e Só o fim frequentaram todas as hit parades de rádios e programas musicais de televisão daquela década, mesmo com o conteúdo libertário e iconoclasta de suas letras. Ao longo daqueles anos e até os dias de hoje, o artista Nova firmou uma imagem de bad boy do rock, que se legitimava com as apresentações rebeldes da banda, muitas delas regadas a pancadarias e bebedeiras homéricas, mas também por declarações polêmicas e intelectualizadas. Conhecidos como os punks do Camisa de Vênus, o grupo descia literalmente do palco para brigar com algumas platéias não menos punks. Assim foi forjado o símbolo Marcelo Nova, que marcaria de forma indelével a juventude daquele tempo e a memória musical de gerações que viriam a seguir.

"Vivemos numa época fragmentada!" Marcelo Nova.
          Avesso ao sucesso fabricado, aos bajuladores de plantão e à excessiva exposição na mídia, Marcelo enfrentou diversos problemas com a indústria musical justamente por não se adequar ao sistema. Por causa de sua rebeldia, desde 2003, tornou-se artista independente, deixou de pagar jabás e, naturalmente, deixou as rádios e tvs. Reverenciado por todos do mainstream e amado por legiões de fans espalhadas pelos quatro cantos do planeta, mesmo assim Marcelo Nova pode ser considerado um homem fácil. Diferentemente de outras celebridades do mundo da música, ele funciona mais ou menos como um ser humano normal, a quem procuramos diretamente quando desejamos falar. Aliás, foi ele próprio quem me ligou para tratar de uma gravação para o novo dvd que está produzindo, dando seguimento a sua carreira solo.
Letras de Marcelo Nova funcionam como uma espécie de
 Retrato de Dorian Gray ao avesso; nos divertimos enquanto
contemplamos nossa desgraça.
Numa rápida conversa, antes mesmo de começarmos a gravar a continuação da série Lendas do Rock, tive a sorte de ouvir do ícone pop do pensamento niilista dos oitenta, a resposta a uma pergunta bastante simples: O que é básico hoje? (segue a resposta de Marcelo) _ Talvez seja não fugir do clichê, mas penso que, no primeiro caso, por ele ser uma unânimidade, isso se comprova quando você se interessa a ler, quando você está defronte do material que ele deixou, que é um sujeito chamado William Shakespeare. Porque eu não conheço na literatura, e aí a maneira como ele escreve: passional, intensa, inteligente, brilhante, criativa; a falar desbragadamente sobre o ódio, sobre a paixão, sobre a inveja, sobre o poder, sobre o sexo, sobre o ciúme; sobre todas as qualidades e defeitos que nós humanos possuímos. Tudo isso é mais que literatura, já pode ser considerado também filosofia no sentido pluralista: são várias filosofias, várias meditações sobre vários assuntos. Ele me parece que é o pai da matéria, da reflexão humana. Quando você pretende refletir sobre algo, pode ter certeza de que o velho bardo já refletiu muito antes de você, até porque faz quatrocentos, quase quinhentos anos que ele nos brindou com aquela obra extraordinária. E o outro, num patamar contemporâneo, que escolheu não a pena, mas escolheu um instrumento, é (Bob) Dylan, que tem tratado a poesia e os seus textos de uma maneira mais que poética, filosófica. Algumas vezes, bastante filosófica...
"Você lê a letra de Mr Tambourine Man (Bob Dylan) e diz:
como aquele menino conseguiu escrever isso?" Marcelo Nova.
Longe de parecerem óbvios, os nomes citados por Nova superam de longe a burrice das unanimidades. Não são apenas estas duas figuras que Nova reverencia em sua entrevista, mas Shakespeare e Dylan estão no cerne da cultura de nosso tempo. Nada poderia ser mais emblemático do que esta mistura, pois ela é surpreendentemente reveladora de nossa maneira de abordar as questões mais cruciais da humanidade. E talvez seja esta a função do gênio na sociedade; trazer à luz temas de difícil entendimento para os pobres mortais.
         Considerado o maior dramaturgo de todos os tempos, William Shakespeare teve o mérito de levar ao grande público as questões abordadas pelos filósofos gregos de uma forma que o povo pudesse entender e se divertir.  Muitos de seus textos e temas, especialmente os do teatro, permaneceram vivos até os nossos dias, sendo revisitados com frequência pelo teatro, televisão, cinema e literatura. Entre suas obras mais conhecidas estão Romeu e Julieta, que se tornou a história de amor por excelência, e Hamlet, que possui uma das frases mais conhecidas da língua inglesa: To be or not to be: that's the question (Ser ou não ser, eis a questão).  E é precisamente a manutenção desta dúvida que parece explicar seu interesse: somos vulneráveis, vulgares, incapazes de decidir e morreremos assim.
Quase quinhentos anos depois, Shakespeare permanece
insuperado em sua arte de trazer ao domínio público
as principais preocupações humanas.
Em 2004, o cantor e músico norte-americano Bob Dylan foi escolhido pela revista Rolling Stone, como o 2º melhor artista de todos os tempos, ficando atrás somente dos Beatles e uma de suas principais canções, Like a Rolling Stone, foi escolhida como a melhor de todos os tempos. Influenciou diretamente grandes nomes do rock americano e britânico dos anos de 1960 e 1970, destacando-se aí The Beatles, notadamente nas composições de John Lennon, a partir do álbum Rubber Soul de 1965. Músicas como Blowin’ in the wind tornaram-se símbolos da luta por direitos humanos sem que ele próprio fosse um ativista ou artista engajado. E o mais incrível, suas principais letras foram escritas quando Dylan tinha entre dezenove e vinte e três anos. Se você para e lê o conteúdo daquelas canções, se pergunta: Como um garoto poderia tratar destes temas com tanta propriedade e profundidade e de uma forma tão... pop!?
Uma coletânea dos trabalhos de Marcelo Nova fornece uma radiografia social de nossa época. Nela, é ele quem fala desbragadamente sobre sexo, ódio, a hipocrisia do amor romântico, o poder e a paixão.  Obra não panfletária, suas letras dizem que as igrejas existem para enganar as pessoas, que o amor não existe e que, afinal, ele faz as coisas do seu jeito. Capaz de trazer a clássica Joana d’Arc ao domínio dos shows de rock, Marcelo fez um tipo de som que fugia à cartilha comportadinha de outras bandas de seu tempo. Defensor de sua identidade artística, suas letras e músicas continuam em franco processo de evolução. Apesar de amado pelo público, Marcelo se recusa a repetir suas canções do mesmo modo que foram gravadas. Para ele, isto só pode soar falso, pois a música não é algo afastado de seu meio e não pode ser compartimentada numa caixa que lhe prenda a uma única forma. O rigor de seus textos e a importância que estes ocupam em seu trabalho ainda devem ser melhor estudados, mas o nosso bardo baiano caminha a passos largos para o panteão dos imortais.
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Stanley Kubric
chega ao cúmulo de responder às três perguntas
mais importantes da humanidade.
Admiro os gênios pela simplicidade com que tratam de assuntos tão complexos ou delicados. Marcelo faz isso em suas poesias criando uma música que atinge a todas as gerações com um efeito catártico devastador. A contundência de suas afirmações só são amenizadas pela forma simples e direta com que as formula. Suas letras funcionam como uma espécie de Retrato de Dorian Gray ao avesso, nos divertimos enquanto ouvimos o anúncio de nossa desgraça. 
       Eu acrescentaria ainda, por minha conta, para melhor entendimento do papel de grandes artistas, um nome definitivo na cultura que merece ser lembrado e este é Stanley Kubric. Autor daquele que é considerado o melhor filme de todos os tempos, 2001 – Uma odisséia no espaço, ele responde, até com certa graça, a três questões que poderiam nos levar à loucura: Quem somos? De onde viemos? Para onde iremos? As três partes do filme. Com uma duração total de 139 minutos e apenas 40 de diálogo, analisa a evolução do ser humano, desde os primeiros hominídeos capazes de usar instrumentos, até a era espacial e para além desta. Sem recorrer a Deus, ao final, temos as respostas, mas não nos tornamos adeptos de nenhum culto. Marco do cinema mundial, Kubric conseguiu abordar os temas mais radicalmente pesados, criando filmes densos e de grande importância para a cultura, mas que agradavam ao público que os assistia e aos estúdios que os bancavam.
Se tomarmos emprestado o frankfurtiano conceito de Indústria Cultural, cunhado para definir a conversão da cultura em mercadoria, concluiremos que toda a produção cultural e intelectual passou a ser guiada pela possibilidade de consumo mercadológico. O mercado visa a maior quantidade de público e lucro e faz sempre escolhas que atendam ao desejo de grandes maiorias. Grandes massas são ignorantes em geral, portanto, produtos culturais que se destinam a estes públicos devem necessariamente se encaixar em seus padrões sócio-culturais, o que significa dizer que atendem à demanda destas pessoas por diversão com um mínimo de conhecimento, ou seja, o formato atual do entretenimento. Artistas passageiros e oportunistas prendem-se a fórmulas de sucesso já testadas, estanques e momentâneas, produzindo obras massificadas e efêmeras. Gênios existem para tornar simples aquilo que é complexo e para nos ensinar. Suas obras são permanentes e abertas. Muito mais do que guiados por certezas, alguns dos grandes artistas souberam manter uma forte conexão com a cultura e um permanente estado de tensão e dúvida em suas obras. Não se preocuparam com as tendências e sim com a universalidade das questões humanas, lançando perguntas ao ar e ouvindo as respostas soprando com o vento.

André Bechelane

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